terça-feira, 27 de abril de 2010

Entrevista a estudante Rebecca Hudson / Universidade Livre de Berlim


(1) Você se vê a si mesmo como poeta dentro de uma certa tradição da poesia brasileira?


A primeira pergunta é interessantíssima, porque já tive, muitas vezes, e ainda tenho, crises de identidade artística. O grande problema é que não me identifico com a maioria dos poetas. Para mim, o papel da poesia é o desvelar a coisa, dizer o que não se diz, ensinar, orientar, ser a mensagem da salvação. É um ponto de vista antiquado. Sou poeta místico, porém escrachado, antimetafórico, apocalíptico, escatológico. Sou profeta. Faço uma poesia que responde às necessidades espirituais de nosso tempo. Vejo os poetas em geral como os "gagos de Babel", imagem terrível e verdadeira de outro poeta místico, Jorge de Lima.

Sou poeta, sim, na acepção mais radical do termo. Mas a minha radicalidade me afasta dos meus pares. Como disse Iumna, sofri o vexame de todas as segregações. É claro que tudo i sso é também tea tro. Teatro alegórico. Cumpro o meu papel no grande teatro do mundo (Calderón de La Barca), da melhor maneira. Isto quer dizer que me considero um poeta verdadeiro, um poeta de verdade, o Poeta da Verdade. Desde Bundo e outros poemas, rasgo os véus simbólicos, arranco a calcinha e a cueca de metáforas, alegorias, arquétipos e que tais, e mostro o que é o inefável, o sublime, o sagrado, a coisa etc. E faço tudo isso experimentando as mais variadas formas artísticas, e todos os registros, estilos, sem preconceito.

Assim é que, temática e formalmente, me tornei um poeta diferente no cenário da poesia contemporânea. Ainda citando Iumna: "A alta voltagem da poesia de Valdo Motta foge aos enquadramentos usuais da poesia brasileira."

A maioria dos poetas faz da poesia um fim em si mesma. Para mim, ela é apenas arma, instrumento, um meio para chegar aonde quero: o Deus humano. Não endeuso a poesia e a arte, como o faz a maioria dos poetas e artistas.

(2) Você considera sua própria obra mais "universalista" que "brasileira"?


Procurei resolver os antagonismos em minha poesia, conciliando o particular e o universal, o pessoal e o social, o superior e o inferior etc., através de um jogo dramático, em que os antagonistas são máscaras do mesmo. "A terra é semelhante e pequenina", diz Fernando Pessoa, e eu procuro a universalidade, os traços comuns, os laços que unem todas as coisas. Isso ocorre principalmente a partir do livro Bundo e outros poemas. Até quando falo de mim, me despersonalizo, como notou Iumna.. Em meus versos muitas vezes perversos subvertem-se os valores e as posições de conceitos e ideias ditos contraditórios, de modo que o nefando se torna a tradução do inefável, o lugar do sublime é o do excremento, o chulo traduz o culto, e se misturam o erudito e o popular. Minha poética é feita de paradoxos, contradições, tapas e beijos entre opostos, transações alquímicas, macumba, putaria, carnaval.


Acho que é perceptível em minha poesia um indiscutível alma brasilíca, através de regionalismos, bem como uma tendência à molecagem, ao humor, ao escracho, à carnavalização, à antropofagia. Ao mesmo tempo, notar-se-á uma rebeldia rimbaudiana, aliada a uma postura messiânica, profética, de profetas bíblicos, e de místicos loucos que, em geral, não fazem parte da tradição literária brasileira. De qualquer modo, a novidade de minha poesia creio que está em lançar mão de todos os recursos possíveis para dar conta da grandiosidade sem tamanho de um tema escabroso: a identidade entre o nefando e o inefável, etc., em que o ânus é, como disse, Roberto Schwarz, o centro do universo simbólico. A minha poesia opera o milagre de transformar algo repulsivo, vergonhoso, infame, em fonte do bem supremo, a partir da constatação semântica, da descoberta etimológica, de que o sagrado é, no corpo, o lugar separado, isolado, intocável, infame, vergonhoso, rep rimido, desprezado, proibido. Essa visão traz alguma esperança para um mundo em que todos os valores faliram, e todas as promessas falharam, e todas as verdades transitórias já faleceram ou estão com o pé na cova.


Em meu caso, a relação entre universal e brasileiro (ou regional) se coloca de maneira dramática, complexa. É que o brasileiro/regional se confunde com outras particularidades: ser negro desbotado, de classe pobre, homossexual confesso, místico escrachado, poeta maldito e, ainda por cima, capixaba. A poesia é, por si mesma, uma atividade marginal, entre os gêneros literários. Ser apenas poeta, como é o meu caso, é uma verdadeira loucura. Mas é também um orgulho inimaginável: pois a poesia é a mãe de todas as artes, ciências e religiões.


Creio que os elementos brasileiros e universais em minha poesia estão equilibrados. Pensemos no livro Bundo e outros poemas. O título é uma palavra africana, da língua quimbundo, de onde veio a nossa palavra bunda, que também significa coisa de negro, com sentido algo pejorativo. Contudo, Bundo é uma leitura homoerótica da Bíblia, de mitos de várias culturas, e de fontes as mais diversas e incomuns. Uma cosmovisão anal.


Em Bundo, encontram-se a carnavalização, o deboche, o humor, as contradições, o fervor religioso, o amor à bunda, a mistura de referências de várias culturas ocidentais e orientais (africana, judaico-cristã, hindu, grega, sumeriana, chinesa etc) que metaforiza a miscigenação.


O problema é que nós temos apenas 500 anos de idade, e as nossas raízes culturais se alastram por muitas terras, países, fontes. Que devemos conhecer, pelo menos um pouco, para entender melhor a alma brasileira.
Devo a minha existência, e o que sou e penso, a tudo que existiu antes de mim.


Também entendo que a minha relação com o distante, o remoto, se deve ao fato de eu ter, numerologicamente falando, muitos 9 (nove) em meu mapa; este número por ser o mais alto, significa tudo que é elevado, profundo, distante, longinquo, demorado, extremo. A nona casa zodiacal representa, entre outras coisas, religião, sacerdotes; assuntos internacionais, lugares distantes, tempos remotos etc.Gosto muito de ler sobre culturas antigas, primitivas, seus mitos, costumes, e me interesso por religiões em geral. A ponto de inventar a minha.


Ainda sobre a relação entre regional e universal, tem mais uma coisa: sou capixaba - palavra que significa roça e roceiro, capiau, bocó etc.. Mas os capixabas afirmam que um dos traços mais fortes de nossa identidade - talvez devido à complexa miscigenação que houve por aqui - é o ecumenismo, a universalidade.
Em tudo que leio eu me vejo e vejo olhos que me veem.

(3) Você pode dizer quais autores (nacionais e do exterior) influenciaram/influenciam sua produção literária?
No final da década de 1970, comecei a fazer teatro amador e gostava de ler quase tudo que a Civilização Brasileira publicava, e me identificava com o discurso e a arte da esquerda, a poesia engajada, um pouco de Ferreira Gullar, o teatro de Brecht, muitas coisas.

Li um pouco de vários dos modernistas, e me identifiquei com Oswald, de quem li poemas, romances e peças, e Mario, Raul Boop, Bandeira. Pode ser que um espírito oswaldiano me acompanhe, nem que seja por afinidade onomástica. Aprendi alguma coisa de arquitetura poética nos poemas de Drummond, a quem devo o mote de alguns dos meus poemas.
Contudo, o poeta que me influenciou mais profundamente talvez seja o numeroso Fernando Pessoa. Um pouco menos Jorge Luis Borges, Rimbaud etc. Entre os contemporâneos, gosto muito da poesia surreal, xamânica e utópica de Piva, e amo a escatologia e a viadagem gozosa/gozante da poesia cultíssima de Glauco. Como se pode ver o meu panteão literário, o meu paideuma é mixuruquinha.

Na vertente mística, gostei muito de São João da Cruz e John Donne, que o grande amigo Amylton de Almeida me recomendou quando percebeu que eu me tornara um místico irrecuperável.
Sem falsos pudores, são os profetas bíblicos os autores de minha predileção.
Fiquei impressionado com a leitura da Epopeia de Gilgamesh, que seria a origem de incontáveis mitos, inclusive bíblicos.
Apesar de toda a influência do mundo literário, deve-se considerar que grande parte de minha bibliografia é um pouco incomum, e inclui leituras de Cabala, astrologia, numerologia, tarô, simbolismo (do corpo, principalmente), mitologia, embriologia, matemática, hebraico, e uma miscelânea surpreendente.

Autores com os quais tenho alguma afinidade: Rimbaud, Maiakóvsky, Kaváfis, Artaud, Fernando Pessoa e seus heterônimos, São João da Cruz, Borges, Drummond, Roberto Piva, Glauco Mattoso e vários outros que não lembro.
Essa afinidade deve ser bem pensada. Defendo em minhas oficinas que literatura é diálogo de um autor consigo mesmo (afinal, cada um é uma legião de outros), com outros autores e os seus leitores. Costumo adotar, em meus poemas, várias modalidades de diálogo intertextual - paródia, paráfrase, palinódia, colagem, glosa, citações, alusões etc., mas sobretudo o diálogo comigo mesmo. Deve ser frisado que a minha apropriação/abordagem do discurso alheio é geralmente interpretativa, hermenêutica, analítica, filosófica. Principalmente, em se tratando da Bíblia e fontes místicas, mitológicas.

Lembre que faço uma poesia de ideias, conceitos (a logopeia poundiana), que desentranha um sentido homoerótico, anal, de textos bíblicos, de mitos, e de fontes variadas. Em minha poesia ocorre o desnudamento metafórico do sagrado, é um desvelar, é a revelação apocalíptica, escatológica, esperada e temida. Embora predomine a logopeia em Bundo, nos poemas de Waw, há uma farta ocorrência de melopeia (rimas, aliterações, assonâncias, metros, ritmos diversos) e fanopeia (descrições e fabulação imagéticas). De qualquer modo, penso que predomina em toda a minha poesia, antes e depois de Bundo (e principalmente nesse livro), o jogo de ideias, a crítica do pensamento político, social, econômico, religioso, científico, filosófico, artístico. A partir de Bundo e outros poemas, além da crítica, também ofereço a solução.

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