domingo, 21 de fevereiro de 2010

JURUPARI*

Em sendo chegado o tempo
de um novo evangelho
e novas revelações
de combate ao mal da terra
e renovação do mundo

Jurupari vem do céu
sem trombetas e sem pompa
para restaurar a terra
e anular-lhe todo o mal
para ensinar outra vez
os preceitos rituais
as regras da convivência
e as normas de conduta
– a justiça e as leis
das regiões siderais
a arte de bem viver
a fórmula da justiça
da alegria e da paz.

Jurupari contristado
viu que o povo sofria
falto de conhecimento
vivendo como animais.

Cheio de aporrinhação
farto de ouvir uis e ais
Jurupari meditou
sobre o seu nome e destino:
boca silente, reticente
que jamais tuge nem muge
que nunca diz chus nem bus
que não diz uste nem aste
cúmplice do mal do mundo.
Isto não quero ser mais.

Jurupari se enfurece
e rasga sem dó nem pena
a plumagem de metáforas

da linguagem angelical
escangalha o figurino
transgride os protocolos
e códigos celestinos
espezinha os floreios
da retórica divina.

Jurupari se revolta
e revoga seus decretos.
Resolve abrir o bico
arreganha a matraca
põe a boca no trombone.

Jurupari vira o jogo:
torna-se o linguarudo
desbocado
boquejante
boquirroto
boquinegro.

Tem puçanga na língua
o uirari das palavras
a mandraca da poesia
o feitiço da verdade

que embevece os justos
e arrebanha os humildes
e enlouquece os ouvintes
e amedronta os boçais.

Jurupari filosofa:
– Esta vida é um buraco
do buraco todos vêm
ao buraco todos vão.
E não escapa ninguém.
Buraco que come
buraco que caga
buraco que vê
buraco que ouve
buraco que fala
buraco que pensa

buraco que anda
buraco que sente
buraco que ama
buraco que sofre
buraco que chora
buraco que sonha...

Tome lengalenga
tome blablablá
tome nhenhenhém.

Jurupari desembucha,
escancara a bocarra,
solta a língua, rasga o verbo,
revela, desvela, esparra.

Clama e proclama
o seu evangelho
conta os segredos
desvenda os mistérios

– desencanta o mal.

Jurupari jurupi
Jurupari jurubi

Jurupari juraci
Jurupari jurucen

jurupuxi juruguera
jurubanga juruboca

Boca interditada
por leis e editais
boca lacrada
por lacres morais
boca selada
por falar demais
boca atarraxada
por conveniências
já não serei mais.

Sendo mister acabar
com a farsa milenar
derrotar a esfinge
matar a charada
decifrar o enigma
decantar o mistério
contar o segredo
quebrar o encanto
vencer o dragão
enganar o diabo
desafiar os deuses
dizer o indizível
com todas as letras,

o alcagüete dedura
a bocaina de Yanderu
o tohu e o bohu
o ninho do surucucu
a caverna de Platão
o buraco do tatu

o vazio dos místicos
o vácuo dos cientistas
o abismo teológico
o nada dos paspalhões
o ocão insofismável

a coisa intangível
a coisa imponderável
a coisa incognoscível
a coisa inefável
a coisa inominável
a coisa abominável

a coisa numinosa
a coisa secreta
a coisa misteriosa
a coisa terrível
a coisa maldita
a coisa vergonhosa


a coisa de Kant e Heidegger
a coisa de Freud e Lacan
a coisa em si

Jurupari desembesta
a falar a coisa a loisa
o treco o trem
o troço a joça
e berra
e ruge
e estruge
o cujo

o nome feio
o nome sujo
a palavrinha
o palavrão

* Poema do livro inédito "Terra Sem Mal"

2 comentários:

  1. Hum... Passando pra fazer uma visita. Gostei de Jurupari. Vou ler os outros. Abraços

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  2. Uma pena que a Literatura Capixaba esteja como está. Inacessível e algumas vezes trancafiadas por seus próprios escritores, que fazem de seus escritos joias raras, como se fossem inalcançáveis e indignas aos pobres 'mortais', nós leitores.

    Lastimável

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